Cruzeiro do Sul, Acre, 23 de novembro de 2024 03:28

A Balsa dos Derrotados: mitologia e cordelismo nas eleições acreanas – Leandro Altheman Lopes

a69745_2de073cdfc1442ce88822151102147a5~mv2

“Senhoras e senhores, vos apresento a balsa do Juruá versão dois mil e vinte e quatro. Autoria do original, Chico Gatão. Meus senhores e senhoras peço aqui sua atenção; em versos descreverei, pois já virou tradição, contando com bom humor o que fez o eleitor nesta nova eleição. Nossa câmara comporta quatorze vereadores,sendo assim vou descrever as lutas e dissabores de quem ficou no caminho, na peia ficou sozinho a lamentar as suas dores. Toda tropa vem entrando, já não tem aquele sonho. Da urna foi expurgado, ô pesadelo medonho. Quem perdeu, tem jeito não, entra na embarcação com o semblante tristonho”.

A Balsa

Para um acreano a noção de ‘balsa’ é algo tão entranhado na cultura local que explicá-la para os ‘não-iniciados’ em seu mistério é tarefa que requer certa dose de didatismo. Primeiro: o que é a ‘balsa’?

Balsa rumo a Manacapuru

Trata-se de um fenômeno ou mitologia popular que atribui aos derrotados na última eleição um lugar em uma balsa imaginária. Esta parte do local da derrota no dia seguinte, normalmente dois dias após a eleição. Por exemplo: como neste ano a eleição aconteceu no sábado, os derrotados terão apenas o domingo para fazer as malas e partir em direção à Manacapuru, município amazonense situado às margens do rio Solimões. A viagem imaginária dura alguns meses, o suficiente para que os derrotados possam saborear o gosto amargo de terem sido preteridos na eleição. Parece haver um ‘timing’ perfeito para que os derrotados ruminem a derrota, até assimilá-la. É uma ‘purga’; sendo a um só tempo o castigo, mas também a cura para a alma, como os remédios caseiros das avós, esse conceito ancestral e popular na Amazônia que relaciona suportar o amargor de certas plantas à aquisição de saúde e vigor, assim.

Chico Gatão

Em Cruzeiro do Sul, a balsa imaginária ganha materialidade através de uma poesia em formato de cordel, cujo autor atual Francisco Gomes, atende pela peculiar alcunha de Chico Gatão.

Chico Gatão

Quem vive ou já viveu no interior certamente reconhece aquelas figuras que por uma ou outra razão ajudam a definir a vida social própria daquele lugar, como num auto de Ariano Suassuna ou numa novela de Dias Gomes.

Professor, radialista e mestre da União do Vegetal, Chico Gatão é uma dessas figuras protagonistas de Cruzeiro do Sul, cidade situada às margens do rio Juruá, na Amazônia acreana. Chico Gatão, ademais, tem sido o autor de mais de 30 ‘balsas’, que correspondem a cerca de 30 pleitos eleitorais.

Segundo o autor do cordel, a balsa trata de traduzir a derrota com graça e leveza. “O objetivo não é tripudiar ou execrar, mas tornar a derrota leve e engraçada, como uma caricatura poética, um contraponto lúdico da dor sofrida pela derrota.”

A origem da balsa

Sobre a origem da balsa, há duas versões diferentes, mas semelhantes. Segundo uma delas, no início do ciclo da borracha, enquanto os vapores eram a navegação de luxo, as balsas eram destinadas aos viajantes empobrecidos, condição natural de quem sai perdedor de uma eleição.

A outra versão explica que no tempo do Território Federal do Acre, quando a população rejeitava um interventor, o embarcava à força e às pressas em balsas que nada mais eram do que um agregado de pélas de borracha daquela safra. Sem toldo, sujeitos a chuva e ao sol e por vezes sem motor, os viajantes iam de ‘bubuia’, ou seja, carregados pela correnteza do rio, numa viagem penosa de semanas até Manacapuru.

Sobre Manacapuru ser o destino final do cruzeiro imaginário, Chico Gatão explica que é o último porto do Solimões para quem vem do Juruá, e conta ainda outra anedota que faz parte do ‘complexo mitológico da balsa’ que trata de dizer que, ao chegar no destino final, os derrotados ainda são obrigados a permanecer por um tempo ouvindo o ‘choro do surubim’. Ouvir o ‘choro do surubim’, assim como ‘pegar a balsa’ são sinônimos populares para ‘perder a eleição’.

A ordem de embarque

O embarque na balsa segue uma ordem que obedece às necessidades da rima, mas geralmente se inicia pelos candidatos derrotados aos cargos proporcionais, no caso deste ano, os vereadores.

“Essa balsa é qualificada, grande a sua arquitetura, pois lá vão grandes talentos da nossa linda cultura.

Tem Ulisses e Anitta pra coisa ficar bonita com grande desenvoltura.

Transmitido em ondas curtas, o roteiro fluvial, Nubia Adriana vem gritando e passando mal.

Merece até um estudo, pois dava conta de tudo, era aquele Vendaval”.

É uma balsa que vai lotando, o povo todo embarcando para cumprir o seu roteiro. Anunciando o embarque, chamando os marinheiros, num palanque improvisado naquele estilo festeiro, falou grosso e agora fino, é o Neto Vitalino, o locutor do Cruzeiro”.

A parte final da balsa é destinada aos candidatos majoritários, que irão formar o que Chico Gatão denomina “Estado Maior”: é o comando, formado neste ano pela candidata derrotada à prefeita e seu vice.

“6 de outubro finalmente chegou, todo o povo convidado, irá unir e escolher, aguardando o resultado. Essa briga vem de longe, 11 ou 15, 15 ou 11; o que passou é passado. Afinal, chegou o dia de saber da decisão, o que fez o eleitor com esse trunfo na mão. O que ele irá dizer ou então o que fazer? Bate forte o coração…

Disputa polarizada, corda bem esticadinha e, só com dois candidatos, não dá pra sair da linha. Quem então vai embarcar? Um ou outro vai sobrar, ou é Jéssica ou Zequinha?

Jéssica Sales vem embarcando sem demora, o leão lhe apoiando; é chegada finalmente a hora. Ela assume o comando; no cais o povo acenando, lá na balsa a turma chora. Ela que vai comandar o cruzeiro fluvial. No cais o povo se agita e começa a dar o tchau, de megafone afirmando; foi chegando e foi gritando: ‘tou na área pessoal!

No fim das contas, eu sei, quem manda mesmo é o povo. Escolhe quem vai e quem fica, e assim faz o renovo. O povo disse que sim, e pra você e pra mim, será um Zequinha de novo. Zequinha foi reeleito, com Delcimar vai governar, cuidar bem do nosso povo que preferiu não mudar. A capital da farinha fez logo o Z de Zequinha pro trabalho não parar.

Por aqui eu me disperso, deixo minha gratidão, até porque todo pleito querem balsa com razão. Fica então o meu recado, aquele abraço apertado do amigo Chico Gatão”.

A poética da balsa

O tipo de poesia da ‘balsa’ tem elementos que remetem ao estilo do cordel e da trova. Com uma contagem silábica semelhante, geralmente heptassílabos (sete sílabas), o que é comum em cordéis e trovas. As rimas estão em esquema de rima cruzada ou emparelhada, também um recurso tradicional na poesia popular brasileira.

Chico Gatão atribui ao irmão marista Luís Santini o seu gosto pela poesia. A ordem religiosa católica dos maristas teve e tem até hoje importância fundamental na formação de Cruzeiro do Sul, onde ensinaram desde profissões técnicas como mecânica e carpintaria até artes e letras e formação de cidadania. Num exemplo de integração nacional cultural, Luís Santini, um sulista de origem italiana, foi quem despertou no nortista Chico Gatão, o gosto pela poesia de cordel, uma tradição nordestina.
Outro ponto identificável é o de que a ‘balsa’ reflete mitologias mais antigas como naquela grega em que travessia do submundo é realizada por Caronte, responsável por transportar as almas dos mortos através do rio Styx ou Aqueronte, que separa o mundo dos vivos do submundo, o reino de Hades. O mito se repete com algumas variações entre egípcios, celtas e chineses e mesmo os indígenas da família Pano, que habita a região do Juruá, também têm seu próprio mito sobre a travessia que envolve, como sempre, um rio.

De certo modo simbólico, perder uma eleição é também uma forma de ‘morte’, ainda que permita o retorno.

No cordel da balsa, a imagem do barqueiro sombrio e implacável, cede lugar à troça e à pilheria, refletindo o que talvez seja um jeito nosso, brasileiro, de fustigar quem faz a travessia.

O rio e a vida

Mas nada pode ser mais Amazônico do que ter a vida determinada pelo seu Rio, seus ciclos de cheia, vazante e repiquete, a sucessão de praias e barrancos de suas curvas que, como serpente, mudam de lugar; as idas e vindas de todos nós, passageiros da vida, os banzeiros que formamos e dos quais por vezes somos presas. São praticamente infinitas as metáforas entre a vida e o rio e para o homem amazônico, esta é uma metáfora muito presente em seu dia a dia.

 

Ao fazê-la, Chico Gatão, autor popular de uma tradição amazônica, relembra as palavras de Santini:

 

“O que merece ser feito, merece ser bem-feito. Assim como os grandes poetas se inspiravam-nas ninfas para escrever com graça e beleza, devemos nos inspirar em nossos próprios rios, a floresta e suas cores, a vida pujante desse rio que nos conecta, sabendo ouvir as juruanas, as ninfas do Juruá”