Cruzeiro do Sul, Acre, 27 de novembro de 2024 00:51

Abril indígena: resistência do povo indígena Nawa na Serra do Divisor, em Mâncio Lima

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Abril é um mês de intensa mobilização social e política dos povos indígenas no Brasil. É pensando na continuidade das lutas dos povos indígenas – que extrapolam um único mês e é vivenciada por eles todos os dias do ano – que, nessa edição, iremos abordar outro povo habitante da cidade de Mâncio Lima: o povo Nawa.

Como muitos acreditam e erroneamente se posicionam, o povo Nawa não é um povo “ressurgido”; eles sempre estiveram presentes e atuantes na formação social, política e econômica de Mâncio Lima. Os Nawa são anteriores à formação do município: os primeiros relatos do povo Nawa datam do século XIX e, de lá para cá, os indígenas vivenciaram diferentes processos históricos e culturais para continuarem vivos e ativos na formação da cidade onde hoje habitam.

Invasão e perseguição do povo Nawa

A história de Mâncio Lima é marcada pela fundação de vários seringais que, ao se instarem na região, perseguiam, capturavam e escravizavam os indígenas como mão de obra para extração da seringa. As estradas de seringa eram de profundo conhecimento dos indígenas e estes foram os principais vetores de uma economia que enriqueceu cidades vizinhas, capitais e países europeus, na medida em que borracha era exportada para mercados britânicos no período de industrialização crescente.
 

Antes da formação e municipalização da antiga Vila Japiim [atualmente Mâncio Lima], os Nawa já haviam passado por diversas migrações que ocorreu com a fuga do povo da região de Cruzeiro do Sul, passando por Rodrigues Alves e se instalando onde hoje reivindicam seu território ancestral, no Parque Nacional da Serra do Divisor.

As narrativas de origem do povo Nawa incluem o período de intensas violências. O fogo – como é recordado pelos mais velhos – causou o incêndio das malocas dos seus antigos parentes, o que obrigou as migrações e fuga.

Período da Borracha

Para sobreviver, os Nawa passaram a não mais fugir e se inseriram no regime econômico da borracha, que cada vez mais necessitava de mão de obra. O serviço, análogo à escravidão, foi aceito pelos indígenas como uma forma para evitar a perseguição e massacre. Como consequência, os Nawa passaram a esconder sua identidade e viveram como trabalhadores da seringa, o que fez com que a narrativa histórica passasse a considerar os Nawa como extinto a partir de 1904.
 

Entretanto, a narrativa de origem do povo Nawa evidencia o contrário. O que muitos consideram equivocadamente como “extinção” é compreendido pelos Nawa como “período da transformação”.

O mito da transformação conta que uma mulher, cuja a filha era estéril, foi a procura da filha perdida na mata. A filha tinha muito desejo de ter filhos e teria ido à floresta pedir para aos seres da mata para engravidar. A mãe, ao encontrar a filha no chão, percebeu que a moça estava morta, porém em transformação em uma anta [‘Awá’, na língua indígena]. Da transformação foram geradas duas mulheres: Mariruni e Chicaca

O mito de transformação dos Nawa tem estreita relação com a história do Vale do Juruá. Mariruni e Chicaca foram consideradas pela historiografia da região como as “últimas índias Nawa” – e são consideradas também como as formadoras da gênese do povo Nawa. As grandes famílias Peba são filhos, netos e bisnetos de Mariruni. Chicaca, por sua vez, tem seus familiares morando, em parcela menor, no território indígena na Serra do Divisor.
 

Por conta da narrativa de origem, os Nawa se consideram como da origem da anta [Awa]. Para os Nawa, a transformação em anta durou cerca de cem anos. Nesse sentido, se para o não-índio os Nawa “estavam extintos”, para o próprio povo eles estavam, na verdade, em transformação. A narrativa mítica do povo coincide mais uma vez com a narrativa histórica, na medida que em 1999 – quase cem anos depois da considerada “extinção” – o povo passou a afirmar suas origens para a sociedade e para o Estado Brasileiro.

Os Nawa e as lutas do tempo presente

Os Nawa são um povo de base matriarcal, dividido em duas linhagens: linhagem da Mariruri e linhagem da Chicaca. Por ser de base matriarcal, as lutas e mobilizações são puxadas, sobretudo, pelas mulheres indígenas. Atualmente, além de vivenciar o reforço das práticas simbólicas do povo, a maior e mais intensa luta dos indígenas é pela demarcação de seu território – cujo processo já dura mais de 20 anos.

De acordo com Lucila Moreira Nawa, liderança feminina, são as mulheres que protagonizam vários dos processos de revitalização da cultura. “As mulheres estão acompanhando tudo, juntamente com os homens. Elas nunca deixam de lutar e participar juntamente com os homens. Se não tiver as mulheres, os homens não têm força”, comenta a liderança Nawa.
 

A fala da indígena reforça a preocupação com as questões de gênero dentro da Terra Indígena Nawa. Além de Lucila – liderança política feminina e professora da língua na aldeia –, as indígenas Anália Nawa (professora da língua indígena, artesã e ceramista) e Francisca Carneiro Nawa são alguns nomes que atuam fortemente na luta política e revitalização das práticas dos antigos parentes. Esta última – Francisca Carneiro Nawa – é umas das principais anciãs e detentora dos conhecimentos tradicionais da cerâmica e tecelagem na Terra Indígena.

A Terra Indígena Nawa está dividida em Novo Recreio I e II, Sete de Setembro e Zumira, cuja população habita as cabeceiras dos igarapés: Novo Recreio, Zumira, Jarina, Venâncio, Jordão e Pijuca. Atualmente, a maioria dos cargos de Saúde Indígena e Educação Escolar Indígena são ocupados pelas mulheres. Dos quadros de profissionais indígenas nas duas áreas, 59% são ocupados por mulheres, o que demonstra a maior participação das indígenas nos processos de decisão do povo.

“No tempo passado”, como comentam as lideranças, muitos dos indígenas migraram e foram viver na cidade, omitindo a identidade ou afirmando-a em contextos específicos. Em vários bairros de Mâncio Lima, parte do povo se estabeleceu e reelaborou os modos de existência no contexto urbano. Os bairros de Mâncio Lima, a saber: Iracema, Guarani, Porto Japiim, Vila Japiim, Colônia São Francisco e São Domingo – esse último na zona rural do município – são alguns dos bairros onde há contingente e núcleos familiares de Nawa.

Memória e identidade

A juventude do povo tem um papel fundamental na revitalização das práticas culturais. Atualmente, o povo tem iniciado, por meio dos jovens, processos de resgate da memória. A jovem Aldeci Muniz Nawa é uma das indígenas que atuará no projeto “Vidas Indígenas: a ancestralidade vive na memória”, vinculado ao Museu da Pessoa, um projeto colaborativo virtual, cujo objetivo é documentar a história e biografia de indígenas.

Aldeci soma-se a Tarisson em trabalhos de revitalização da memória. O indígena, que também faz mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro, desenvolveu trabalhos audiovisuais em torno da memória do povo Nawa. Atualmente, sua pesquisa de dissertação tem como temas principais as memórias, biografias, trajetórias de vida e identidade indígena.

Os Nawa são um dos povos cuja história mostra a capacidade de resistência e adaptação frente à expansão da borracha na Amazônia Brasileira durante os séculos XVIII e XIX. Os indígenas reelaboraram, atualmente, suas práticas e estabeleceram várias estratégias para continuarem com seus costumes e práticas culturais que tanto agrega a diversidade étnica à cidade de Mâncio Lima. Como afirmam as lideranças do povo, a cultura está dentro do pote de barro e aos poucos os Nawa mostram ao mundo o que está guardado dentro do pote.
*Jornalista, mestrando em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS-MN/UFRJ). Assessor de Comunicação do Fundo Indígena da Amazônia Brasileira – Podáali.