TÓQUIO, JAPÃO – Nos anos 1980, a TV Record exibiu matéria sobre boxe feminino em uma academia paulistana. Nos dias seguintes, dezenas de mulheres procuraram o local para treinar o esporte. Mas não havia aula. As pugilistas eram modelos, e a reportagem havia sido encenada.
Três décadas depois, o Brasil tem uma inédita medalha de prata na modalidade. Na primeira final olímpica de uma sul-americana, Bia Ferreira, 28, ficou com o segundo lugar na categoria até 60 kg nas Olimpíadas de Tóquio. Por decisão unânime dos cinco juízes, ela foi derrotada pela irlandesa Kellie Harrington.
“Espero que com essa visibilidade toda, as meninas se animem a lutar e que não tenha só uma Bia, nem só uma Adriana [Araújo, bronze em Londres-2012], mas várias meninas. Eu vou ficar feliz, e vai ser uma parte do meu trabalho sendo realizada”, disse Bia após a luta na madrugada deste domingo (8), horário de Brasília.
O resultado dela não é apenas o amadurecimento do esporte que praticamente não existia no país há 30 anos. Coroa também o melhor desempenho do boxe brasileiro na história dos Jogos. Além de Bia, o país foi ouro com Hebert Conceição (até 75 kg) e bronze com Abner Teixeira (até 91 kg).
Superou a previsão do técnico da equipe, Mateus Alves, de dois pódios.
“Desculpa, pai. Desculpa, Brasil”, disse a brasileira para a câmera, após a derrota. Ao caminhar para o vestiário, em seguida, colocou a mão direita, ainda com a luva, sobre o lado esquerdo do peito e pediu perdão de novo, desta vez para os integrantes da delegação do país presentes na arena Kokugikan.
É uma reação de quem está acostumada a vencer. O título olímpico era o único que faltava em sua carreira amadora. Ela foi campeã sul-americana (2018), Pan-Americana e Mundial (ambos em 2019).
No ano passado, Bia foi a primeira brasileira a se tornar líder do ranking da AIBA (Associação Internacional de Boxe). Em 26 competições, subiu ao pódio 25 vezes. Nas previsões mais otimistas de dirigentes brasileiros antes da viagem a Tóquio, Bia era a grande aposta para a medalha de ouro. Quase deu certo.
A baiana, filha de Raimundo Pereira, também boxeador e três vezes campeão brasileiro, fez três lutas antes da disputa do ouro. Venceu todas por decisão unânime, a mesma forma que perdeu a final.
Antes mesmo de subir ao ringue contra Kellie, ela havia falado sobre ganhar a medalha como presente para o pai. Seria o único que levaria do Japão ao Brasil porque “o yene [moeda do país] é muito caro”.
“Um atleta que se acostuma com a derrota não é atleta. A gente tem que ser sempre melhor. Só de estar em um pódio de Jogos Olímpicos, já somos campeãs. Lutamos bastante para estarmos ali”, disse, usando o plural para se referir também à irlandesa, a quem deu um abraço no final da luta. Mas confessou que ela “estará entalada” em sua garganta até o próximo combate.
A pugilista estava confiante. Ao se aproximar do ringue ao som de “Favela Chegou”, de Ludmilla e Anitta e o seu trecho que pede “respeita, carai”, Bia apontou para o chão e bateu no peito, como quem diz “é aqui e é agora”.
Ela comemorou ao final de cada um dos três rounds. Até do segundo, quando os cinco juízes deram vitória para a irlandesa, algo que causou surpresa no treinador da brasileira. É uma técnica comum no boxe. Erguer a luva para o alto por ter certeza da vitória, mesmo que isso não seja verdade.
A tática de ficar parada a perseguir a irlandesa, que girava mais, se movimentava e acertou mais golpes, não deu certo. E Bia sabia disso assim que terminou o combate. Ela pode ter comemorado porque existe mais de um sentido para a palavra vencer.
“[A medalha de prata serve] para provar que mulher pode fazer o que ela quiser. E incentivar as meninas ao esporte. Meninas, façam esporte! Façam luta, vale muito a pena, é muito especial viver isso aí”, pediu.
Foi um caminho de 24 anos desde que, aos 4, Raimundo perguntou para a filha se ela queria aprender alguma luta na academia que ele tinha em Salvador. Em 2021, Bia foi uma das três brasileiras a participarem das Olimpíadas em Tóquio. O boxe feminino entrou no programa dos Jogos em Londres-2012. Bia Ferreira se tornou a face mais visível de um movimento para que o país tenha mais pugilistas.
Se não decidir se tornar profissional, algo que a equipe permanente brasileira tentará impedir se ela receber proposta, poderá tentar a medalha de ouro novamente em Paris-2024. Acostumada a ser a primeira do país em tudo na modalidade, ainda não abandonou o sonho de obter o inédito ouro para o boxe feminino.
“A gente não pode parar. E, Paris… Vamos ver, vou falar com meu chefe [treinador], e a gente vai fazer a melhor escolha. Mas se depender de mim, sim, viu? Quero mudar a cor da medalha”, disse.