No último 25 de outubro, por ocasião da reinauguração do Aeródromo de Porto Walter (a sempre querida e intocada Rivendell da minha infância e juventude), tendo consciência da desimportância do passado para a maioria das pessoas, resolvi compartilhar um texto escrito há alguns anos. Nele, registro duas ocasiões, sem nomes e sem datas, nas quais os moradores foram iludidos pelos poderosos com a possibilidade da construção de um aeroporto.
Campo de Aviação
Aquela vila abrigava as melhores almas da região. População dócil, de costumes simples como assistir missa aos domingos, ao desfile de Sete de Setembro aplaudindo sofregamente o discurso do Seu Padué relatando na ocasião festiva o heroísmo do Defensor Perpétuo do Brasil no barranco do igarapé do Ipiranga.
A docilidade dos habitantes só não envolvia um pequeno grupo. Tão pequeno que cabia numa pequena mesa quando disputavam uma partida de dominó enquanto o povo se rachava na carestia. Era tal burguesia de barranco que conduzia com enorme destreza, um magote de infelizes ao inferno de uma vida miserável.
Ali o tempo era mais lento que nos outros lugares. O tempo, aliás, sempre teve a velocidade das nossas expectativas. E expectativa, se um dia habitou por ali, tinha se mudado fazia muito tempo. A localidade era habitada por certos indivíduos que apesar de idosos, não conheciam o Cruzeiro, embora falassem de um tempo em que a localidade dispusera de juiz e promotor. E existiam também os que conheciam o Brasil de pé e ponta, que falavam bonito, que eram respeitados pelos políticos do momento e que mandavam dinheiro para os filhos torrarem no Rio de Janeiro na esperança de vê-los virarem doutor. Menos mal para os filhos dos dóceis, que ficavam livres da humilhação da convivência na escola, com os filhos daqueles arrogantes que podiam comer “corned beef” e tomar café com leite. Assim, para dar a dimensão da desigualdade, um saco de bolachas Papaguara ou uma sacolinha de sandálias Havaianas, ganhado ou achado, poderia facilmente ser transformado em mochila escolar sem o risco de cair na mangofa.
A população inteira, com todo o rigor censitário, talvez não beirasse três centenas, porque houve um tempo que os retirantes de mala e cuia já nem eram percebidos.
Ainda não havia prefeitura. As principais instituições eram representadas pelo subprefeito, o subdelegado, o enfermeiro e o padre. O enfermeiro podia consultar e passar remédio, o subdelegado podia prender, soltar e até açoitar se quisesse, o padre casava, batizava, tirava missas e recebia ajuda do estrangeiro, já o subprefeito, por não ter subprefeitura construída, atendia no balcão de seu barracão. Dos quatro, pelo menos três escravizavam a população e seus tentáculos se entrelaçavam. O subprefeito, que também era dono do gado criado solto na vila proibia a construção de cercados ao redor das moradias, e por não ter recursos para a limpeza pública pedia ao padre que convocasse os moradores para, através de adjunto, brocarem o campo da vila que era o mesmo do seu gado. Obrigado mesmo não era, pelo menos uma portaria ou decreto não havia, mas ficava feio não ir e de vez em quando as colinas da Vila eram tomadas por trabalhadores voluntários, exterminadores da maliça, do buchuchú e do rinchão que infestavam os caminhos. Quanto ao subdelegado, bom e respeitado seria, quantos mais seringueiros prendesse se encontrados em gravíssimo crime de venderem borracha ou qualquer produto extraído das estradas para os regatões. Vinte e quatro horas de xadrez era a pena mínima para aquele crime, além de ser o indivíduo obrigado a brocar o campo ou limpar a sentina dos guardas da polícia e baldear o quartel. E o padre, de certa forma, contribuía com a exploração, amansando os fiéis, pregando a obediência e o respeito às instituições como o proceder único a quem quisesse entrar no céu. Ah, o céu…
Aviões de uma polegada já faziam a linha Cruzeiro – Amônea, causando nos pobres moradores uma inveja e uma incompreensão por não possuírem um campo de aviação.
Assim, no dia que o padre no final da missa anunciou a chegada de um soldado do 7º BEC para tirar o terreno para construir um campo, causou um tremendo alvoroço entre os paroquianos. Pedia a compreensão e a ajuda de todos, pois na fase inicial não havia recursos, era uma obra de interesse da coletividade e o progresso viria, tal e tal… Os homens entenderam a necessidade e amolaram seus terçados, a maioria até comprou terçado novo, sem desconto algum nos poucos comércios locais.
A chegada do elemento militar na Vila era obra de suspiros e insônia. Suspiravam as mulheres ante a possibilidade de verem pela primeira vez um representante do Exército Nacional, e insônia dos pais de família preocupados com o que as suas mulheres poderiam perder ou ganhar, conforme o caso. Por grande sorte, o praça se mostrou homem de respeito, casado, e, mesmo falando pouco, era simpático.
A área escolhida deveria ser a várzea. Era só brocar, derrubar, tocar fogo, encoivarar, destocar e aplainar o terreno. O elemento militar mandou abrir duas picadas, mediu, fez anotações, cohichou com alguns e decidiu. Era terreno bom. Restinga alta paralelo ao rio, medindo mais de 800 metros, próximo à Vila e certamente apresentando uma vantagem extra: o dono ou arrendatário do terreno receberia uma fortuna da União pela venda da área, tudo com papel assinado e recebido.
Decidiram dividir a área em três lotes. Cada lote entregue à responsabilidade daqueles que compunham a elite para preparar o terreno. Tudo isso em seis meses.
Cinquenta homens motivados, brocando direto por duas semanas, mesmo em terreno cipoento, são capazes de fazer esbagaçado. E fizeram.
Durante o broque o assunto quase não era outro: aviões aterrissando, decolando, possíveis acidentes (sempre tem um mais pessimista), chances de emprego, anulação de distâncias, o progresso, mas também, cobras, brigas, mulheres, abelhas, cabas…
Nunca se fumou tanto em quinze dias. Nunca também, em toda História do lugar, o consumo de álcool e seus derivados foi tão reduzido. Era lei: homem que fosse encontrado bebaço na área do broque seria expulso imediatamente. Não foi necessário aplicar a lei. Os cachaceiros não queriam remar a vergonha de fazer feio no serviço a troco de um mata-bicho qualquer.
Como era só brocar, derrubar, tocar fogo, encoivarar e esperar o retorno do militar engenheiro para destocar e aplainar o terreno, assim foi feito. Mas houve que os três responsáveis tiveram a ideia de aproveitar o terreno com algum legume enquanto o homem do exército não aparecia. Terreno tão grande com 800 metros de extensão e 100 de largura, brocado coletivamente, bem poderia ter sido plantado da mesma maneira e na colheita, teria lugar a maior fartura. Não foi possível ou permitido. Após a encoivaração, os miseráveis foram cuidar de suas vidas e de seus próprios roçados, e a imensa área, bem dividida, só deu três lotes. Milho, arroz, feijão, melancia e tabaco, por serem de rápido desenvolvimento, foram culturas escolhidas para ocupar o terreno. Aquele foi o maior roçado e também o maior desarranjo que se teve notícia por ali, nem as imensas e lendárias plantações do Altair na fértil terra da Pimenta, rivalizaram em tamanho. .
Com a colheita se aproximando, a harmonia das partidas de dominó entre os burgueses ficou impraticável. Disputavam quase às bordoadas um a um os trabalhadores disponíveis. A messe era grande e os operários eram poucos, o padre não deixava de ter razão. Só no tabaco quase falta verbo pra dar conta. Tirar lagarta, quebrar, enfiar na palha, tirar envira, fazer corda, arrumar, arrochar e entaniçar. No milho e no arroz o trabalho não era menor. A ruçara a as graúnas fizeram do manejo um sofrimento cruel. Quase falta roupa para fazer espantalho, e nem assim os bandos grasnantes davam trégua. Os quebradores de milho chagavam as mãos pelo contato com a palha e encalombavam o couro. Mutucas, piuns, cabas e abelhas, que antes apareciam só de vez em quando, admiradas com o movimento invadiram o roçado. Seu Marcelino, o artesão do cipó, que não dava conta na produção de caçúas para o transporte da produção, suspendeu a produção de cestas e vassouras iniciando a produção em série, sendo obrigado a contratar um tirador de ambé e titica.
Foi a maior colheita de todos os tempos e um lucro assombroso para os proprietários.
Barcos carregados desciam em direção à Cruzeiro do Sul para negociar a produção.
Findo aquele desarranjo, o movimento amainou e aos poucos a capoeira foi tomando conta do terreno e como o sujeito do exército nunca mais apareceu, foi-se atenuando a ideia daquele campo de aviação. Como a lembrança de quem parte pra longe, quanto mais tempo cada vez mais distante, priquiteira, malva, tiririca, maliça e embaúba se apossaram da pista. Maracanãs, curicas e periquitos aproveitavam os tocos ainda de pé de uma floresta transformada em cinzas para fazerem seus ninhos. E, mais uns meses, juritis, rolinhas e outros voadores aproveitavam a galhada e as sementes de uma nova floresta silenciosamente ressurgida.
Os anos passaram. Velhos foram feitos defuntos, jovens se fizeram adultos, crianças nasceram e as necessidades continuavam circulares. Uma dessas necessidades era um campo de aviação. E houve uma segunda tentativa.
Será contada de maneira menos dramática, pois o coração traído se resguarda em amar novamente e endurece até a poesia.
Inesperadamente, numa tarde do final de outubro, quando as primeiras águas engrossam o rio e se abarrentam, encostou no porto do Arigó. Era uma balsa tocada a rebocador transportando uma pá-mecânica, um trator de esteira e um caminhão-caçamba. Transportava também um enorme tanque de combustol.
Pela manhã, com a força da pá-mecânica o tanque foi arrastado barranco acima e entregue à responsabilidade do subprefeito. Na mesma manhã, as máquinas se arrumaram na balsa e partiram na direção do Alto Juruá. Iriam consertar a pista do Amônea, e, no retorno fariam o tão sonhado campo de aviação.
Com a balsa ainda manobrando no porto, já definiram o terreno. O local escolhido? Poderia ser qualquer um, pois, segundo os lambanceiros, não existia no mundo terra alta que não viesse abaixo com a força de um D-8. Escolheram a vasta terra firme no caminho que levava ao Maloca, após o Bianor.
Lá foram quase todos, novamente brocar e derrubar, dessa vez, sem o apoio da igreja que por razões diversas não esquecera o encaminhamento dado na primeira tentativa. Mas, e pra quê? A verba era gorda, havia as máquinas, o combustível… Pois é.
Não houve quem tivesse a ideia de aproveitar o terreno, e nem havia tempo, pois o serviço no Amônea seria rápido, sequer tocaram fogo. Enquanto aguardavam o retorno das máquinas, as inquietações já aperreavam alguns. Não havia o que temer, argumentavam outros, pois elas estavam rio acima e teriam que voltar pelo mesmo caminho. Teriam que voltar, na pior das hipóteses, para resgatar o tanque de combustol. Era só esperar.
Na tentativa de reerguer a floresta a gitirana enlaçou a derrubada. Na tentativa de formar uma família, alguém roubou uma moça de família, alguém morreu, mataram um boi, um bando de queixadas passou por ali… e as máquinas, nada.
Uma madrugada, porém, às três da manhã e após o sentar da lua, alguém vindo do Lago do Humaitá, deu conta de uma enorme sombra percorrendo a extensão de rio que cruza a vila e sumindo na curva do estirão. Era a balsa que furtivamente, com motores desligados voltava à Cruzeiro do Sul. Ficou o tanque de combustível para ser transportado depois, mediante uma força policial, pois os moradores não permitiriam o transporte.
Como a construção do campo de aviação era fruto de verba liberada e os recursos precisassem ser justificados, desenharam a pista nos mapas, mas esqueceram de avisar aos aviões. De vez em quando, vinha algum em voo tira-fino, rodeante, procurando a pista e confuso, ia embora, perdido em devaneios e divagações…
Mas o progresso, mesmo que viesse varejando, enfim chegou. Em 92, com o município instalado, a prefeitura já dispondo de um trator, e aproveitando o novo campo de futebol (construído para acalmar os futebolistas que haviam perdido sua praça esportiva para o prédio da prefeitura) construiu uma pequena pista que serviu por mais de dez anos. Tinha uns 400m de extensão, de barro vermelho e capim imitando as piores pistas dos garimpos, com uma das cabeceiras limitada pelo remanso do rio Juruá. Era uma aventura escorregadia no inverno e de poeira no verão. Em 1998, a serviço do TRE nas eleições daquele ano, lembro-me do banho de poeira que tomei enquanto aguardava o helicóptero que nos conduziria às comunidades mais afastadas.
Apenas depois da virada do século, por volta de 2005 no segundo mandato do ex-governador Jorge Viana, a comunidade ganhou finalmente um aeródromo asfaltado com 800m de extensão, com maior segurança, permitindo voos regulares de empresas regionais, sendo um auxiliar na luta dos portowaltense contra o isolamento.
Mais de quinze anos da inauguração e sem uma manutenção mais rigorosa o Aeródromo de Porto Walter já não apresentava as mínimas condições de uso, sendo recuperado durante o ano de 2021, e reinaugurado com a presença do governador Gladson Cameli no dia 25 de outubro.