População ribeirinha do Amazonas convive com a falta de acesso à água potável. E com a cheia dos rios a situação se agravou ainda mais
Em Cacau Pirêra, situado em Iranduba (município distante 27 quilômetros em linha reta de Manaus), ribeirinhos estão sofrendo com a falta de água potável. A cheia dos rios está afetando diretamente a distribuição de água de várias comunidades. Em alguns locais, a água chega suja nas torneiras.
Algumas vezes que a água vem limpa. Às vezes nem dá água. A gente precisa parar de fazer comida, lavar a roupa e outras atividades de casa por conta disso. É água de poço artesiano, mas ainda assim ela vem suja“
Joseli Lopes, Ribeirinha
Na frente da casa de Joseli é possível ver um motor bombeando as águas que chegam dos canos. Como a casa dela é distante das demais, a água não chega se o motor ficar desligado. “Se eu não usar o motor, a água não chega aqui. Outro dia, inclusive, tive que entrar nessa água suja porque um cano rompeu. Já devem ter outros rompidos, porque dá para ver que a água que chega na torneira é do rio”, conta o marido de Joseli, o ajudante de caminhão João Gonzaga
Segundo relatou o casal, os dois adoeceram por causa da água. Grávida de seis meses, Joseli se preocupou com a saúde do filho. “Eu fiquei vários dias de cama, tendo diarreia e muita dor no estômago. Temi pela minha saúde e a do meu filho”, conta
Protozoários e verminoses na água
São diversas as doenças que a água poluída pode trazer para a população. O médico infectologista Nelson Barbosa explica que a maioria das doenças é causada por protozoários e verminoses, capazes de provocar sintomas como diarreia e dores.
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As principais doenças de veiculação hídrica são amebíase, giardíase, ancilostomíase, leptospirose, dentre outras. No passado, aqui na nossa região, a cólera também fez muitas vítimas“
Nelson Barbosa, Médico infectologista
O médico explica que Manaus e os municípios da região metropolitana possuem esses problemas pela capital possuir uma rede de esgoto precária. “Essa rede de esgoto não é o objetivo dos nossos governantes e deveria ser. A enchente ainda piora a situação. Todo o lixo que é jogado nos igarapés chega aos rios e a água dos rios é utilizada pelos ribeirinhos para várias coisas, incluindo o consumo”.
“Eu fervo a água”
A falta de água potável também é uma realidade em outros municípios do Amazonas. Em Boca do Acre (distante 1.028 quilômetros da capital), a dona de casa Gadir Albuquerque, sempre que precisa, retira água de um lago. Ele pega uma canoa e se distancia das margens para coletá-la em um balde. “Sempre foi nossa realidade. Essa água utilizamos para consumo próprio, fazer comida, tomar banho. O que a gente consome, fervemos antes. Mas a água potável mesmo, encanada, aqui não chega”.
Mesmo sendo a segunda cidade mais populosa do Amazonas, conforme estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Parintins, município distante 369 quilômetros de Manaus, há quem também não tenha acesso à água potável.
Morador da área rural de Parintins, Elivando Sousa sempre pegou água de um igarapé que passa próximo de onde mora. “Do Rio Amazonas não dá para pegar e a água da cidade não chega aqui. Então eu pego água de um igarapé e fervo antes de consumir”.
Na opinião do sociólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Luiz Antônio Nascimento, é um paradoxo faltar água potável no Amazonas e a maioria da população já se acostumou com isso.
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As populações interioranas sempre souberam ao longo da história utilizar a água que elas têm. Quase sempre as águas são colhidas dos igarapés que não sofrem tanto o impacto das subidas dos rios. O Amazonas tem um problema histórico e muito grave sobre acesso à água potável“
Luiz Antônio Nascimento, Sociólogo e professor da Ufam
Água é um direito fundamental
De acordo com a Declaração Universal dos Direitos da Água de 1992, no Art. 2º – A água é a seiva do nosso planeta. Ela é a condição essencial de vida de todo ser vegetal, animal ou humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura, ou seja, a água é um dos direitos fundamentais do ser humano.
Para o professor dos Programas de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA-UEA) e do Mestrado em Constitucionalismo e Direitos na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (PPGDir-UFAM), Dr. Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho, a água potável no Brasil é um direito garantido na Constituição Federal de 1988 e os ribeirinhos devem ter acesso a essa água potável.
“O artigo 225 do texto constitucional trata da questão da ambientalidade como um todo. Vale registrar que é a primeira constituição do mundo a ter um artigo que vai tratar diretamente dos direitos ambientais dentro do seu corpo constitucional. Outra garantia do ponto de vista relacionado ao direito é a política nacional de recursos hídricos”, enfatiza.
Do ponto de vista sociológico, Cavalcanti destaca que o não acesso à água potável é uma realidade geográfica de exclusão e de falta de governança. “Faltam políticas públicas que valorizem essa população ribeirinha. Isso, inclusive, vai evidenciar invisibilidades políticas e sociais. É uma grande desumanidade. É uma limitação da cidadania na Amazônia e principalmente na Amazônia profunda, onde pessoas vivem distante de centros urbanos”.