Cruzeiro do Sul, Acre, 26 de dezembro de 2024 17:33

Opinião: Entre a ausência de empatia e a minha repulsa ao perfil hircoso

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Não há nesses tempos tão lúgubres ou sombrios para a humanidade quem ainda não tenha perdido, sem despedida, um conhecido, prestigioso ou até mesmo um parente. Ressalto que independente de quem tenha ‘partido’ o dissabor é alteroso, assim como a dimensão da dor está diretamente relacionada à capacidade de provação e superação que cada um de nós guarda de resiliência. Temos, porém, consciência e certeza de que vidas e, sobretudo, vidas humanas importam e de que tais perdas impactam amarga e profundamente nas nossas vidas. Afinal nos referimos a pessoas que direta ou indiretamente fazem parte do nosso convívio social, cultural, politico e profissional. Por conseguinte, não poderia ser diferente, pois carregamos no coração: estima, afeto, querença, afinidade e tantos outros sentimentos bons, e por essa conduta humanitária atribuímos valor aos mais abstratos laços de afetividade.

Pessoalmente já perdi vários conhecidos e uns tantos amigos. Por eles, já sofri muito. Procuro me sentir menos triste, pois felizmente não tive nenhum parente que tenha ido a óbito em decorrência dessa ‘peste que devora gente’, bem como a almas dos que ficam, mas confesso que nem sempre consigo. Agora ela se aproximou de vez, alcançou meu agrupamento familiar. Desde a semana passada um tio (irmão da minha mãe) foi intubado no INTO, com radiografia dos pulmões indicando mais de 80 % de comprometimento. Para a alegria dos familiares, hoje 01 de março, veio a notícia de que a medicação está agindo e que ele está reagindo lentamente. Com quadro estabilizado ele responde com melhoras na  saturação de oxigênio. Alívio, expectativa positiva e cautela! Sabemos se tratar de doença traiçoeira. Uma de suas características tem sido a melhora seguida de decesso em decorrência de outras patologias. Todo cuidado é pouco. Mas tudo bem, a família aguarda ansiosa.

Pois bem. Observando tudo que tem acontecido nesse quase um ano de caos dei-me conta de o quanto somos frágeis e efêmeros. E de quão súbita e inesperada é a passagem da nossa permanência física para a outra dimensão. Dei-me conta de que tudo passa como um piscar de olhos. Você os fecha e quando reabre uma, duas ou mais vidas já se foram. Sendo você uma pessoa sensível, passará horas e até dias se compadecendo com aqueles que perderam seus entes queridos: pais, irmãos, filhos, sobrinhos, primos, etc. Nossa capacidade humana nos coloca frente a frente com o suplício ou martírio alheio e dessa forma compartilhamos a dor e a capacidade de superação que possibilita, à pessoa que sofre, amenizar seu tormento. Sei, entretanto, que o golpe é profundo e duradouro.

Todavia, observei o outro lado dessa fase dramática da crise sanitária contemporânea. Presenciei cenas drásticas e inesquecíveis do mesmo processo. Conheci o que o ser humano tem de pior, refiro-me a uma parcela de indivíduos que nem sei se posso qualificar como seres humanos. Sujeitos tais que certamente desconhecem a existência elementar do sentido de família, amor e de amizade. Vê-se que estão pouco se lixando se pais, irmãos ou quaisquer outros parentes próximos ou distantes; amigos ou quem quer que seja, tenha morrido. E muito menos se um dos seus está sofrendo intubado em um leito qualquer de hospital. Quanto aos profissionais da saúde, para os transloucados não cumprem mais que seus papéis. Triste ouvir, mas é fato que reduz a espécie à condição de irracional. Eles são indiferentes à morte dos ‘semelhantes’. Quis dizer semelhante fisicamente. Ademais, em nada se aproximam dos que expressam condolência, altruísmo e compaixão, pelo menos por aqueles que garantiram sua prosápia, nascitura ou existência. São asquerosos sim. E pior, incapazes de fazer auto crítica.

As fortes cenas desapiedadas, anti-humanas, imperdenidas, etc, são fortes demais e me deixaram anestesiado, intrêmulo, indolente e na mesma medida indignado. Até mais que isso, incrédulo e frio quanto a nossa espécie e um tanto quanto cético acerca da sua permanência. Sinceramente, não posso imaginar nem crer na sequência tranquila e na existência futura e pacífica de uma espécie que respira ódio, destila intolerância e exala preconceito.

Resumindo, afirmo que entrei nesse período de horrendas experiências uma pessoa, mas saio outra. Hoje me enxergo mais congruente, coerente, ponderado, atinado, humano e reflexivo, no que tange à minha caminhada por aqui, do que nunca. Eis que sigo cumprindo a minha passagem como humano, humanamente. Porém, mais triste, melancólico, soturno, desalegre e pungente, com tamanha bestialidade praticada por animais que se intitulam racionais, mas que na prática mancham desarrazoadamente a imagem da nossa espécie. Pessoas insensíveis e incapazes de se comover com o sofrimento coletivo. Observem e pasmem com o tamanho da inclemência, austeridade e insofrimento, que muitos do nosso próprio convívio são capazes de demonstrar. Comportamentos que tinha como impossíveis, vi que não o são. Tanto que bares, restaurantes, praias, lojas e os tantos estabelecimentos públicos, seguem abertos e sempre lotados, como se nada de anormal e letal estivesse ocorrendo.

E não pretendo sequer me referir ao papel do Estado e das suas instituições, pois a distância entre o que poderia está sendo feito e o que tem sido feito, de fato, é abissal. Atenho-me apenas e tão somente ao coração desalmado, cruel e ectotérmico de indivíduos que até outro dia considerava: amigos, parceiros e até irmãos de coração, mas que desde já afirmo não mais fazer parte do meu convívio, por opção minha, pois não consigo e jamais conseguirei, no tempo que me resta, readquirir empatia e fraternidade suficiente para conviver e sequer me manter por minutos ao lado de répteis indiferentes a mais de 250.000 vidas perdidas. Tenho ojeriza, repulsa, aversão, asco e desprezo por esse tipo de gente. E torno público.

Vidas importam sim. E não importa de quem e nem para quem. Basta que se façam vidas.