Medo, preocupação, desafio, responsabilidade são palavras usadas por agentes comunitários de saúde na Amazônia para descrever sensações experimentadas diante da pandemia de covid-19. Ao lado de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, esses trabalhadores são parte integrante das equipes multiprofissionais nos serviços de atenção básica do Sistema Único de Saúde (SUS). Em meio à crise sanitária, tornaram-se fundamentais na disseminação de informações e no monitoramento de comunidades aonde só se chega de barco.
Neste 4 de outubro, como tem ocorrido todos os anos, o trabalho desempenhado por esses profissionais será homenageado mais uma vez por diversos órgãos de saúde. O Dia Nacional do Agente Comunitário de Saúde foi instituído pela Lei Federal 11.585/2007. A data também tem sido anualmente lembrada pela categoria para cobrar melhores condições. São tantas as reivindicações em meio à pandemia que, em maio, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados organizou uma audiência pública para debatê-las.
“Tive medo, mas tivemos que nos aliar à linha de frente. E ia com todos os protocolos de segurança. Na comunidade teve três óbitos. Foi um desafio grande. Não foi fácil. Mas conseguimos os testes rápidos e quando identificávamos os sintomas, já iniciávamos o processo de isolamento”, contou à Agência Brasil a agente comunitária de saúde Krisiane Brito do Nascimento, de 19 anos.
Moradora da zona rural de Iranduba (AM), a cerca de 40 quilômetros de Manaus, ela atendia até o início deste ano a comunidade ribeirinha de Tumbira. Lá não há nenhum posto de saúde. Duas vezes por semana, às terças e quintas-feiras, Krisiane pegava o barco para fazer as visitas domiciliares. Fazia um acompanhamento metódico da saúde dos moradores, sobretudo de hipertensos e diabéticos, medindo pressão, saturação e glicose. Nos outros dias, ficava de prontidão para qualquer emergência e se dedicava ao preenchimento dos formulários online que reúnem dados com informações dos pacientes.
No Brasil, existem atualmente cerca de 400 mil agentes comunitários de saúde. Para exercer a função, é preciso ter finalizado o ensino nível médio, ou fundamental em casos específicos, e concluir curso específico credenciado pelo Ministério da Saúde. Eles podem atuar em ações de promoção da saúde e prevenção de doenças, sobretudo com foco na orientação e nas atividades educativas domiciliares ou coletivas. Terminam sendo geralmente o principal elo da equipe com as comunidades. Na maioria desses locais isolados da Amazônia, por exemplo, não existe um médico ou enfermeiro, e as visitas desses profissionais são esporádicas. Em um caso de emergência, muitas vezes é o agente comunitário de saúde que precisa acompanhar o paciente até a cidade mais próxima.
Esses profissionais também costumam ser pessoas conhecidas da população, antes mesmo de iniciar o seu trabalho, o que facilita a abertura para entrar na casa dos moradores. Era o caso de Krisiane. “Quando comecei a atuar, eu já era bem próxima de muitas pessoas. Mas a gente cria mais vínculos”, afirmou.
Essa realidade ganhou as telas em um documentário que está sendo lançado hoje (4) pela organização não governamental Fundação Amazônia Sustentável (FAS). Em 42 minutos, o filme intitulado Entre banzeiros e canoas: os agentes de saúde da Amazônia reúne histórias de trabalhadores que, como Krisiane, atuam em comunidades localizadas dentro de unidades de Conservação (UCs). O filme aborda as dificuldades da profissão e o cotidiano dos profissionais que atuam na floresta. Disponíveis 24 horas por dia, são muitas vezes acionados na madrugada. No dia a dia, dão dicas de higiene e alimentação, recomendam a prática de atividade física, verificam os cartões de vacina, dão instruções sobre a importância do pré-natal, entre outras recomendações.
Há relatos de casos críticos em que o trabalho do agente foi fundamental, como em uma crise de pedra na vesícula e um trabalho de parto. Na pandemia, somaram-se às tarefas de rotina a distribuição de máscaras e álcool em gel, a instrução sobre os procedimentos que a população deve adotar e a preparação da comunidade para receber as equipes responsáveis pela vacinação. Elas vão de casa em casa, informando o dia de recebimento da primeira e da segunda dose.
“É uma escolha profissional bonita. A gente visita, dá orientações, faz palestras para crianças, para mulheres, para homens. E temos que fazer uma busca ativa”, conta Waldemir da Silva. Aos 62 anos, ele é o agente indígena de saúde na comunidade Três Unidos, do povo Kambeba, localizada na zona rural de Manaus.
Com experiência de quatro décadas na profissão, ele conta que a pandemia tem sido o momento em que sentiu a maior responsabilidade. “Me deixou muito preocupado, principalmente com idosos e adultos da comunidade que são diabéticos, hipertensos, anêmicos. Aumentamos as visitas. Às vezes, a gente visitava até dez vezes por dia, porque teve paciente que ficou muito ruim. Tivemos uns 40 casos”, relatou à Agência Brasil.
Em meio à pandemia, outras enfermidades e incidentes também não dão trégua. “Não é que não tem água potável na comunidade, porque tem. Mas, às vezes, as crianças ou os adultos tomam banho no rio e podem engolir alguma água. Então há casos de diarreias, náuseas. A temperatura também faz isso, porque tem dia aqui que é muito quente. E tem a malária. Não tem dado tantos casos, mas todo caso que aparece é preocupante, porque dá febre alta, causa enfraquecimento, vômito, diarreia”, diz Waldemir. Ele também traz na ponta da língua o número de pessoas que já ajudou após picadas de cobra. “Foram 33 casos, de vários tipos como jararaca e surucucu-pico-de-jaca”, disse.
Embora o agente indígena de saúde seja listado na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), não se trata ainda de uma profissão regulamentada. Sua atuação é reconhecida no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, criado em 1999 atrelado ao Sistema Único de Saúde. No entanto, há poucos parâmetros para o processo de contratação, embora geralmente seja preservado o direito de indicação da própria comunidade. “Fiz um processo seletivo de acordo com a realidade dos povos indígenas”, conta Waldemir.
Para regulamentar a profissão, está em tramitação o Projeto de Lei 3.514/2019, da deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR). A proposta busca conceder aos agentes indígenas de saúde prerrogativas profissionais que já têm os agentes comunitários de saúde. Também reitera algumas especificidades, entre elas a necessidade de domínio da língua, dos costumes e dos conhecimentos tradicionais de cada etnia. O projeto garante a participação da comunidade indígena nos processos de seleção. Em junho, ele foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias e agora aguarda apreciação na Comissão de Seguridade Social e Família.
Dificuldades
Com a apoio do setor privado e convênios com o Poder Público, a FAS atua em quatro frentes para superar as dificuldades do trabalho na Amazônia: realização de pesquisas como o diagnóstico do SUS na floresta, que atualmente está em andamento, a organização de cursos de qualificação, o financiamento de ambulanchas e a estruturação do sistema de telessaúde. Segundo Luiz Castro, coordenador do Programa Saúde na Floresta, desenvolvido pela organização, uma demanda mais imediata é a necessidade de mais cursos de primeiros socorros, que não são hoje considerados obrigatórios.
“Eles têm que estar preparados para aquela emergência. E não está definido no seu rol de atribuições os primeiros socorros. Mas quem está vivendo numa comunidade, a oito horas ou mais de barco da sede do município, precisa de pessoas preparadas para atender. E isso precisa ser reconhecido”, diz ele no documentário produzido pela FAS. Segundo Luiz Castro, os agentes sabem que as comunidades dependem deles, já que a maioria não conta com um técnico de enfermagem e muito menos com um profissional de saúde de nível superior morando no local.
De acordo com Waldemir, a relação próxima com os moradores amplia a responsabilidade. “O agente de saúde é geralmente uma pessoa comunicativa. Está sempre informando, palestrando. E vai fazendo amizade. Conversa com as pessoas mais velhas, com as crianças. É a primeira pessoa a ser informada de qualquer problema. Quando exige um entendimento mais aprofundado, eu chamo o técnico de enfermagem. Mas o agente de saúde é quem passa a confiança do sistema de saúde. É um contato de rotina que gera respeito, dignidade”, observa.
Apesar da importância desse trabalho, entidades que representam a categoria cobram maior valorização. Na audiência pública realizada em maio, a Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e dos Agentes de Combate às Endemias (Conacs) mostrou a falta de qualificação específica para o combate à covid-19. Ainda segundo a entidade, em muitos locais foi necessário provocar o Ministério Público para que agentes comunitários de saúde fossem vacinados, porque não eram considerados profissionais na linha de frente do combate à pandemia, como os médicos e enfermeiros.
Uma das principais cobranças durante a audiência pública foi a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 14/2021, de autoria do deputado Dr. Leonardo (Solidariedade-MT). Ela estabelece proteção social e valorização dos agentes comunitários, além de garantir aposentadoria especial e exclusiva e fixar a responsabilidade do gestor local do SUS pela regularidade do vínculo empregatício. Para a Comissão da Federalização dos Agentes Comunitários de Saúde, a forma como as contratações ocorrem atualmente gera vulnerabilidade, fomenta o assédio e permite que agentes comunitários de saúde sejam transformados em marqueteiros políticos.
A falta de regularidade do vínculo empregatício gera instabilidade. O contrato de Krisiane se encerrou em fevereiro deste ano. Desde então, ela aguarda uma nova possibilidade de contratação pela prefeitura de Iranduba. “A gente sente falta do trabalho. Mas depende dos governantes”, diz. Melhorias estruturais e disponibilidade de insumos também são reivindicadas para permitir melhor atuação não apenas de agentes comunitários de saúde, mas de todos os demais integrantes das equipes multiprofissionais. Embora Waldemir avalie que a situação já é bem melhor do que há 20 anos, ele cita algumas limitações. “Picada de aranha e escorpião, a gente consegue resolver por aqui mesmo, mas cobra não. Não tem soro antiofídico para esses casos. Aí é só em Manaus. Temos uma lancha. Dá 1 hora e 20 minutos até lá”.
Edição: Graça Adjuto