MANAUS (AM) – Durou apenas uma semana após a confirmação do primeiro caso da rabdomiólise, mais conhecida como “doença da urina preta”, para que o surto ocorresse no Amazonas. Até a última quinta-feira (2), já haviam sido confirmados 54 pacientes com a doença e uma morte, segundo a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM). Mesmo considerada rara, a síndrome assusta os amazonenses, afeta o comércio regional de pescados e ainda é permeada de mistérios entre especialistas.
De acordo com investigações preliminares da FVS, todos os pacientes relataram que consumiram espécies de peixes como pirarucu, tambaqui, pacu e pirapitinga antes de apresentarem o quadro de dores musculares, enjoo e urina escura – os principais sintomas da doença de Haff, caracterizada pela ruptura das células musculares.
Mais de duas semanas após a confirmação do primeiro caso do estado, a FVS ainda não conseguiu confirmar se o aparecimento da síndrome está realmente ligado aos peixes. Mesmo assim, o órgão decidiu orientar, na última quarta-feira (1), a suspensão do consumo de três espécies: tambaqui, pirapitinga e pacu, provenientes de lagos e rios de Itacoatiara, o epicentro do surto no estado com 36 casos confirmados.
No município, é cada vez maior entre moradores o temor de se alimentar de qualquer pescado. Na casa da merendeira escolar Elizabeth Sousa, de 39 anos, espécies como pacu e tambaqui, por exemplo, sempre fizeram parte da dieta alimentar, mas os casos de síndrome de Haff levaram a uma mudança no cardápio da família.
Elizabeth explica que, a princípio, apenas diminuiu a frequência de peixes em casa, mas após a confirmação da primeira morte por causa da síndrome, suspender os pescados de vez. “Na semana em que soube que uma mulher havia morrido, achei melhor não comprar mais. Falta muita informação, sobre quais peixes são seguros ou não, a procedência e todas essas questões”, reclama a merendeira.
A primeira e única morte causada pela doença de Haff ocorreu no dia 28 de agosto. Trata-se de Maria de Nazaré, moradora da vila de Novo Remanso, zona rural da cidade. Ela estava internada desde sexta (27) no Hospital Regional José Mendes (HRJM) após apresentar sintomas provocados pela doença, mas não resistiu.
Segundo o portal local LCJ Notícias, ela e outros quatro familiares que também apresentaram o quadro da síndrome haviam consumido a carne do peixe pirapitinga.
Na terça-feira (1ª), agentes da prefeitura realizaram visitas às feiras e barracas onde são comercializados os pescados em Itacoatiara, para orientar pescadores e comerciantes sobre o manuseio, higiene e venda. Mesmo assim, a população segue sem saber como agir.
Vendas suspensas em Silves
Em Silves, a 181 quilômetros de Manaus, onde há quatro casos confirmados da doença, a prefeitura chegou a suspender as vendas dos peixes Tambaqui, Pacu, Pirapitinga e Arabaiana, na última quarta-feira (1º). No entanto, a medida foi revogada e a gestão municipal voltou a liberar o comércio desses pescados.
“O departamento de vigilância em saúde e vigilância sanitária comunica à população silvense que por não termos dados científicos comprovados e por se tratar apenas de casos isolados de Síndrome de Haff, voltamos a liberar o comércio de pescados em Silves, das espécies de Tambaqui, Pacu, Pirapitinga e Arabaiana”, afirmou a Prefeitura de Silves, por meio de nota.
Doença rara e desconhecida
Pouco conhecida, a síndrome tem intrigado pesquisadores e autoridades sanitárias do Amazonas. Na última quarta (1º), a FVS montou uma força-tarefa com especialistas que atuam em diferentes órgãos do Estado com o objetivo de investigar mais a fundo possíveis causas e formas de combate ao surto da síndrome.
Pesquisadores ouvidos pelo Em Tempo apontam que os casos de síndrome de Haff são considerados raros, e que há várias possibilidades: transporte e acondicionados inapropriados ou mudanças no ecossistema – de toxinas de cianobactérias, que chegam ao peixe pela cadeia alimentar, até a existência de metais pesados nos rios e lagos. Além disso, a toxina não apresenta sabores e cheiros específicos, o que torna ainda mais complexa a sua percepção.
Segundo a infectologista Ana Raquel Rodrigues, há uma variedade de fatores para que a doença se desenvolva. “Nem todos que se expõem ao agente infeccioso, neste caso é uma toxina, desenvolvem a doença. Isso depende da suscetibilidade individual, fatores genéticos, o momento do estado imunológico do paciente e do estado emocional. Isso pode variar, um desenvolver e outro não”.
A médica explica que não há um tratamento específico para a doença, por isso só é possível tratar os sintomas, e que é importante procurar o médico o quanto antes.
Comerciantes sentem efeitos
Os efeitos do surto da síndrome de Haff também já refletem nas vendas de pescados na capital do estado, onde há apenas dois casos confirmados. Na mais movimentada feira pública da cidade, a Manaus Moderna, os comerciantes afirmam que as vendas de peixes caíram pela metade.
Mesmo não apresentando números substanciais de notificações da doença, os consumidores manauaras sumiram das bancas de peixes da capital. Com mais de 30 anos trabalhando com a venda de pescados na Manaus Moderna, o comerciante Rodrigo Pereira, de 44 anos, relata que a repercussão da síndrome derrubou a demanda.
O comerciante descarta que os peixes vendidos por ele possam comprometer a saúde de seus clientes. “Como disse, já são muitos anos de experiências, tenho clientes de longa data e jamais recebi qualquer tipo de reclamação. A maioria dos casos são de Itacoatiara, acho que aconteceu algo pontualmente por lá. Aqui não vejo justificativa para tanto temor. Pelo contrário, acho que há muito mais casos de intoxicação alimentar com outros alimentos industrializados, que a população consome diariamente”, relata.
Questionado sobre o armazenamento dos peixes, Rodrigo Pereira alega que os peixes que comercializa são de municípios distantes da capital. “Os nossos pescados aqui da Manaus Moderna vêm de Coari e Tefé, onde não há poluição”, finaliza.
A equipe de reportagem tentou conversar com outros pescadores da Feira da Manaus Moderna, mas os pescadores preferiram não comentar o assunto. “Parece que quanto mais nós falamos, mais os nossos clientes somem”, se limitou a dizer um deles.
Casos confirmados
Segundo a FVS, já foram notificados 54 casos da doença, sendo 36 casos em Itacoatiara, três em Manaus, um em Autazes, um em Caapiranga, quatro em Silves, três em Parintins, quatro em Borba e um em Maués, um em Manacapuru, além de uma morte em Itacoatiara.