Quatro horas da manhã. O silêncio da madrugada, que era acompanhado apenas pelo som da chuva forte, foi interrompido pelas batidas na porta da parteira Maria Zenaide de Souza Carvalho, na cidade de Marechal Thaumartugo (AC).
Era um amigo pedindo auxílio para que ela ajudasse em um nascimento delicado. O caminho era longo. Pelo menos duas horas a pé pela floresta e sustos no percurso. “Pisei em uma cobra, ela inchou, fez barulho e, ao tentar correr, perdi a poronga. Não tinha nada para alumiar o caminho”, lembra a parteira. Poronga é a luminária improvisada abastecida com querosene que trabalhadores usam no seringal para enxergar o que está na frente.
Passou a se agarrar nas árvores e a contar com a luz da lua.
Quando chegou à casa da gestante, viu que ela estava com dor. “Ela estava sem força e começou a desmaiar. O marido desmaiou. Antes, pediu: ‘Salve a minha mulher’. Nós não trabalhamos com bisturi. Usei os dedos para aumentar o espaço. E a criança nasceu. Foi emocionante. Disse a eles que ninguém morreria. E deu tudo certo.”
O dia deixou recordações fortes e ela lembra como se fosse ontem: 22 de janeiro de 1979. Maria Zenaide só tinha 23 anos. Mas, por incrível que pareça, a história dela como parteira na floresta começou muito antes: quando tinha apenas 10 anos de idade. Fez o parto de uma tia. “Não tinha posto ou hospital. E a gente queria se ajudar.”
Desde então, já foram 306 partos. A maioria absoluta no interior do Acre. Hoje, Maria Zenaide vive em Rio Branco. Mudou para a capital depois que sofreu violência sexual no interior. Agredida, deixou de enxergar com o olho esquerdo.
Em outro parto marcante em sua trajetória, ela recorda a ocasião em que andou por oito horas. “A criança e a família não tinham uma cama ou uma roupa para cobrir. Às vezes, eu chorava diante dessas desigualdades.”
Eu posso ser como ela
Suas histórias ficaram famosas na região e ela escreveu para o programa Viva Maria, da Rádio Nacional da Amazônia. “Lá no seringal, o rádio é o preferido. Escuto o programa faz 40 anos. Nós parteiras do Acre e da Região Norte nos comunicamos por ele. O programa nos uniu.” Ela explica que a jornalista Mara Régia, a apresentadora do programa, sempre a inspirou.
“Nós não tínhamos voz nem voto. Aí quando eu a ouvia, eu pensava: eu posso ser como ela. Ela é mulher e nós também. Me sentia representada por ela. Quase todas as mulheres se sentiram.”
Zenaide explica que o trabalho de parteira é voluntário e é feito por causa do amor “que temos uns aos outros”. Mas Zenaide queria mais. Foi estudar em Pernambuco, fez curso de auxiliar de enfermagem “para misturar o popular com o científico” e chegou a trabalhar em um posto de saúde de Marechal Thaumaturgo. “Ganhava um dinheiro que sustentava a minha família. Mas, depois do estupro, perdi meu trabalho e mudei de lá”. Zenaide conseguiu, depois, se aposentar.
De parteira a cantora
Mas ela não para. Durante esse período de pandemia, fez 13 partos em Rio Branco. Ela é convidada para palestras sobre saúde da mulher e planejamento familiar. Além disso, em 2017, foi descoberta em um novo talento. O seu caminho iluminado pela lua e pelas memórias é acompanhado também pela música. Maria Zenaide foi flagrada por uma amiga cantando no caminho. “Já fiz mais de 500 músicas. Queria viver disso até o final da vida”.
O talento já é considerado indiscutível. A fama chegou ao produtor musical Alexandre Anselmo, que insistiu para que ela gravasse um disco. “Nós consideramos a Zenaide uma mestra da música tradicional aqui no Acre”, afirma o músico.
“Desde criança, eu canto”. Em 2019, viajou para Espanha com outros músicos. “Foram 22 dias e cinco shows“. A pandemia interrompeu a carreira em ascensão da parteira-cantora. “Estava com cinco shows marcados. Tenho 506 músicas. Eu estava gravando um CD com dez músicas sobre a natureza e sobre a temática das parteiras. Música para mim é vida, é saúde.”
A parteira teve um filho biológico, que morreu em 1972 vítima da malária. Depois, a mulher que fez da vida um canto de amor às crianças adotou cinco filhos. Hoje já tem cinco netos. Parto ela só fez de uma das filhas, a professora Ozileide Maria Carvalho, que também mora no Acre. Mesmo com tanta experiência, diz que ficou com as “pernas moles”.
“Ela é uma mãe maravilhosa e nos educou. Crescer vendo seu trabalho foi muito importante. Ela é batalhadora. Ela é um anjo da guarda e o que ela ensinou eu tento passar para os meus filhos”, diz a professora. O neto que Zenaide fez o parto, Valeriano, já completou 21 anos.
Zenaide, além de cantar e fazer partos, faz artesanato para complementar a renda. Quando ajuda no parto, também costuma receber doações. Mas ela sabe que essa é uma missão.
“Ser parteira significa ter coração bom, sem ganhar nada, trabalhar por prazer. Tenho certeza de que o parto na nossa vida é uma realização de vida”.
Edição: Alessandra Esteves